diluindo a confusão no ondular

O Muro

«O Infinito 
Sempre me foi cara esta erma colina
e esta sebe, que por toda a parte
do último horizonte o olhar exclui.
Mas sentando e admirando, intermináveis
espaços para lá dela e sobre-humanos
silêncios, e profundíssima quietude
eu no pensamento me finjo; onde por pouco
o coração não me amedronta. E como o vento
ouço sussurrar entre estas plantas, eu aquele
infinito silêncio a essa voz
vou comparando: e me sobrevém o eterno
e as mortas estações e a presente
e viva, e o som dela. Assim entre esta
imensidão se afoga o pensamento meu;
e o naufragar é-me doce nesse mar.»
-- Giacomo Leopardi

Quando pensamos em "vontade" ou "querer" associamos essas ideias à ideia do "Eu". Assumimos que esse "Eu" tem liberdade de escolha, ou livre vontade, ou seja que somos mesmo nós que decidimos e escolhemos fazer ou dizer isto ou aquilo, vir para aqui, ir para além etc.

Quando considero e reflito sobre o que é este "Eu" que quer, que decide, que age, chego à conclusão que talvez a ideia que normalmente temos desse "Eu" é algo distorcida e não está de acordo com o que realmente podemos observar em nós próprios e na Natureza.

Transcendência do Muro

As nossas mentes estão extremamente condicionadas pela linguagem que usamos para pensar e comunicar, assim como também pelo nosso condicionamento familiar, social e cultural. E é através desse filtro que vemos o mundo. Ou seja as nossas crenças, pensamentos, hábitos, emoções condicionam a forma como percepcionamos o mundo, e consequentemente, também a forma como vamos pensar e interagir com este.

Fomos ensinados desde que nascemos a pensar, a ver e a reagir a esta experiência humana da mesma forma que a sociedade o faz. Portanto quando consideramos questões desta natureza estamos a colocar-nos numa situação em que nos deparamos com esse filtro. Podemos pensar nele também como um grande Muro que nos separa e impede de ver a realidade tal como ela é.

É necessário um esforço para transcender este Muro. Não um esforço intelectual, porque o intelecto está demasiado envolvido com esse Muro e está na sua natureza dividir, catalogar e complicar. É antes um esforço em direcção à honestidade, humildade e coragem. Não uma coragem animal e agressiva, mas uma coragem capaz de nos fazer enfrentar a Verdade totalmente despidos das nossas armas e máscaras que diariamente usamos para nos protegermos.


Quem sou Eu?

O que sabemos sobre esse "Eu"? Quem sou Eu? O que sei sobre mim? Aparentemente temos um manancial de respostas que podemos usar para responder a estas questões: os nossos nomes, datas e locais de nascimento, os nossos pais, o nosso sexo, a nossa história, as nossas paixões, hábitos, opiniões, sonhos, desejos, vicios, fragilidades, defeitos, traumas. Mas será que estas respostas respondem mesmo à questão do "Eu"?

Decerto que a maior parte de nós já se apercebeu da incerteza das nossas vidas. Num dia podemos estar inclinados a agir de certa forma, no dia seguinte podemos estar convictos a agir de forma oposta. Eu já não sou o Bruno que fui na minha adoloscência, embora algumas caracteristicas ou tendências se mantenham. Também já não sou o Bruno que fui na casa dos 20. Além disso temos também fases das nossas vidas que podem durar meses em que se mantêm determinadas sensações e emoções que nos levam a interagir de uma determinada forma com a vida. Passada essa fase chega outra e mudamos, e mudam consequentemente as nossas reacções e também as experiências que vamos ter, que posteriormente nos condicionam para as futuras fases da nossa vida.

Todo o nosso Ser está em constante mudança a todo o momento: o nosso organismo, os nossos pensamentos, percepções, emoções, atitudes. Haverá algo que não muda, algo permanente que possamos agarrar e chamar de "Eu"?

O "Eu" como ideia, conceito, ideal, memória, não pode fazer juz ao que realmente experienciamos como seres sensíveis. Então qual será a resposta? Será que não somos um "Eu" mas vários "Eus"? Dezenas? Centenas? Milhares? Um para cada desejo, capricho, disposição e pensamento? Esta é apenas outra forma de fazer sentido intelectualmente do que realmente experienciamos. Continua a não ser aquilo que é.

Então mas o que é aquilo que é? Podemos saber? Conhecer? Compreender? Talvez. Mas esta compreensão, parece-me a mim, não passa por um esforço intelectual, ou por tentativas de catalogar, racionalizar a questão do "Eu". Poderá até ser um esforço que involva um processo inverso ao de intelectualizar: desaprender o que aprendemos. Talvez seja necessário observar e desconstruir o que nos separa da compreensão: o Muro.

Desencantamento da ilusão

As nossas ideias do "Eu" e do "outro", o nosso condicionamento mental e biológico, a nossa personalidade, hábitos, certezas, formam este Muro ou filtro. É uma barreira invisível pois não a vemos, desconhecemos a sua existência. Mas não é a presença desse condicionamento que mantém o Muro em pé. Somos nós que lhe damos forma ao acreditar no nosso condicionamento. Ou seja, a crença de que nós somos estes objectos ou manifestações que surgem na Consciência, sejam eles intelectuais, emocionais ou físicos faz com que este Muro constantemente se erga à nossa frente.

Outra forma de olhar para este "acreditar", ou uma outra palavra útil poderá ser o "agarrar", o "apego", "dependência", "enfeitiçado" ou "encantado". Mas nós não estamos conscientes de que acreditamos, que dependemos, ou que nos encontramos num processo inconsciente, automático e reacionário de obediência a estas manifestações. Acreditamos nestas porque na realidade parece não haver alternativa, parece não haver nada além delas. Porque sempre foi assim desde que nascemos. É daqui que surge uma sensação de identidade e identificação com o manifesto, com o condicionamento, com o observado.

Quando surge uma emoção, raiva por exemplo, parece mesmo que somos nós que estamos a decidir senti-la, que vem de nós, que é nossa, e que devemos e queremos agir de acordo com esta emoção porque efectivamente estamos a senti-la e a experienciá-la. Ou seja quando ela se manifesta nós acreditamos nela, acreditamos que somos ela, e obedecemos-lhe, e as nossas acções e discurso tornam-se uma manifestação dessa raiva. O mesmo se aplica a pensamentos, memórias, hábitos etc. Este "acreditar" mantém o Muro bem firme e enraizado no nosso Ser.

Ao acreditarmos sermos as manifestações que ocorrem na consciência, permanecemos num estado de ilusão e ignorância, escravos da impermanência sem disso termos conta. Prisioneiros da realidade que este Muro nos dá a ver.

O Observador

A dúvida "mas afinal quem sou Eu?" surge à consciência, mas quem a pensa é o condicionamento, é a forma. A resposta à pergunta está no observar da pergunta. Quem é que está consciente da pergunta "Quem sou Eu?". O que nos diz a observação da impermanência e incerteza das nossas vidas?

A mim diz-me que não há nada a que possamos chamar de "Eu". Que há apenas a Consciência observando a impermanência dos nossos processos internos e externos. E é esta Consciência que pode despertar, deixar de acreditar na ilusão das nossas percepções sobre o mundo e sobre nós próprios e compreender a sua Verdadeira Natureza. E é algo que todos partilhamos, todos estamos experienciando esta realidade através de Consciência. Não existe a "minha" ou a "tua" consciência, existe sim a Consciência que espreita por todos os nossos olhos. Somos seres biológicos que captam Consciência, à qual surge todo este processo orgânico em constante mudança conhecido por Vida. Um processo que acompanha e que está intimamente dependente e ligado ao processo que faz girar o planeta e todas as formas no Universo.

A verdadeira escolha

O nosso papel, o melhor que podemos fazer mediante todo este caos e incerteza é o de descobrirmos quem realmente somos, através de um processo de observação. E podermos tomar a decisão, a mais corajosa e importante, de não deixarmos manifestar nos nossos actos e palavras, as manifestações destrutivas, negativas que experienciamos no nosso Ser.
«Um velho Índio estava dando uma lição de vida ao seu neto.
– Está a acontecer uma luta dentro de mim. É uma luta terrível entre dois lobos. Um é mau - ele é raiva, inveja, angústia, arrependimento, ganância , arrogancia, pena de si mesmo, culpa, resentimento, inferioridade, mentiras, orgulho falso, superioridade e ego. O outro lobo é bom - ele é alegria, paz,compaixão, esperança, serenidade, humildade, gentileza, empatia,generosidade , verdade. A mesma luta está a acontecer dentro de ti, e dentro de todas as outras pessoas também.
O seu neto depois de pensar durante alguns minutos, perguntou
– Qual dos dois lobos vai ganhar?
O velho Índio respondeu
– Aquele que eu alimentar»
A verdadeira escolha, a que realmente poderá ter um impacto nas nossas vidas, ocorre no momento em que temos consciência das manifestações negativas antes de as manifestarmos nos nossos actos e palavras. Se conseguirmos criar um espaço de tempo entre a observação e a acção, podemos introduzir nesse espaço a opção: vou manifestar isto? Ou limito-me a observar?

A raiz da maior parte dos problemas da humanidade está nesta ignorância fundamental de que somos a forma observada. Quando na realidade somos o infinito do espaço que contém, sustém e observa o manifesto, a forma. Qual a solução? Sabermos quem somos. E mais importante ainda, sermos quem somos: Consciência, o Cosmos.

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